segunda-feira, junho 03, 2013

O novíssimo desporto nacional.





O novíssimo desporto nacional.
por Gustavo Nogy (do site Ad Hominem)





“ESTÁ COM A CARA CHEIA DE DROGA! Não pode ser só maldade”. Assim minha mãe, pouquíssimo dada a desnecessárias e nada lucrativas ilações filosóficas, costumava interromper abruptamente a letargia com que eu bebo meu café, e me arranjar entreveros existenciais dignos de um Albert Camus. No caso, seu Albert Camus atendia pelo nome de José Luiz Datena. Importa citar as fontes.


Consternada com a violência diabolicamente gratuita dos "dias de hoje" – no episódio em questão, a frieza assustadora de um homem que matara a facadas a enteada de dois anos de idade, e narrava o crime como se anedota fosse –, ela afirmava, convicta: “Antes não era assim”. Três anos depois, incendiar pessoas parece ter se tornado desporto nacional.

Cinthya Magaly Moutinho de Souza, barbaramente assassinada.


Abril de 2013: a dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza, 47, comete a imprudência de não ter mais do que trinta reais na conta bancária. Três dignos representantes da classe oprimida pela sociedade neoliberal, investidos da autoridade própria dos irremediavelmente injustiçados, resolvem tocar fogo na desavisada, reparando assim algumas das tantas diferenças sociais entre burgueses e incendiários. (Menor ficou brincando com isqueiro)

Alexandre Peçanha Gaddy, mais uma vítima da impunidade


Maio de 2013: dois assaltantes invadem o consultório do dentista Alexandre Peçanha Gaddy, 41, e o trancam no banheiro. Mas não basta trancá-lo no banheiro: há que se atear fogo no banheiro. Eles fogem sem levar nada. Em alguns minutos, veremos especialistas, sociólogos e sakamotos – a canaille de costume, vocês sabem – tentando explicar e, no limite, justificar a barbárie perpetrada. Minha mãe já não está viva para novamente afirmar: “Antes não era assim”. (Ladrões ateiam fogo em dentista)


No último século, os meios de destruição em massa desenvolveram-se vertiginosamente. Podemos acabar dez vezes com a espécie humana e convivemos com o fato com relativa tranquilidade, entre um café e outro. Se a tortura não é exatamente novidade na periclitante história da civilização – sabemos todos que não houve "tempos melhores" –, a produção sistemática e em escala industrial de sofrimento pelos estados modernos supera as atrocidades egípcias, romanas e pré-colombianas em pretensão e eficácia. E o terrorismo – destruição gratuita precipitada por aqueles que não se importam em ser destruídos e, por isso mesmo, tornam-se invencíveis – é dessas coisas que fariam Voltaire engolir o sorrisinho ensaiadamente cínico de Antônio Abujamra avant la lettre.


Theodor Adorno afirmou, dramaticamente, que não seria possível fazer poesia depois de Auschwitz. Como eu o entendo. Não somos capazes de criar uma narrativa da degradação. Aceitamos a violência niilista e perversa tal qual é e como se apresenta. E se esperam de nossa apressada sociologia ao menos a descrição correta do fenômeno, declinamos do convite. Suspeitamos que o mal seja avesso às médias estatísticas.


Os gritos, as ofensas e a histeria do famigerado apresentador são a representação perfeita do que nos sobrou ante casos dessa espécie: a incapacidade de encontrar, na linguagem desgastada e vulgar da indignação barata, as palavras justas, violentamente justas, para condenar o horror. Precisamos inventar um idioma para descrever as penas do inferno.


O problema talvez seja: naturalizamos o pecado. Melhor: higienizamos o pecado. A cosmovisão iluminista, com sua crença no irreversível progresso científico, material e tecnológico – e a esperança de que a razão extirparia do mundo as representações mais nefastas da alma humana – pretende ignorar o óbvio: o homem é capaz do mal. Sem motivos. Ou com o menos previsível dos motivos: porque quer. “Nós estamos condenados à liberdade”.


Acostumamo-nos a acreditar sincera e cretinamente que os crimes não são mais que desregramentos, comportamentos desviantes perfeitamente explicáveis. A violência, precipitada por paixões e desejos, por dívidas ou traições, por vingança ou ideologia. A perversidade como epifenômeno das desigualdades sociais, étnicas, econômicas. Genes ruins, consumo de substâncias narcóticas, traumas na infância, declarações da Marilena Chauí. O criminoso enquanto paciente e a crueldade como sintoma (cabe tratamento). “Deve estar com a cara cheia de droga”.


Nem sempre se está com a cara cheia de droga, mãe. Mas importa dizer: criminosos têm de ser punidos. E crimes hediondos têm de ser punidos na medida de sua hediondez. Não há mais-valia, não há superestrutura, não há conflito de classes, não há bandejão da FFLCH que explique ou justifique que um filho da puta queime outro ser humano. Se não se entende isso, não se entende nada.


As ciências sociais podem eventualmente identificar os motivos dos males que têm motivos. Mas para as manifestações do mal que prescindem de motivos, elas nada têm a dizer. Que nosso querido Michel Foucault descanse em paz. E, sobretudo, que não nos esqueçamos: Caim, o primeiro assassino, não foi “reintegrado à sociedade”. Teve marcado na testa o fratricídio e foi punido com o degredo.


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