Manifesto assinado por Catherine Deneuve.









Teresa Sonhando - Balthus 1938, acervo do Metropolitan de Nova York


A íntegra do manifesto assinado por Catherine Deneuve
por El Pais em 13/01/2018

O estupro é crime. Mas a paquera insistente ou desajeitada não é crime, nem o galanteio é uma agressão machista

A onda expiatória parece não ter limites. Aqui, censuramos um nu de Egon Schiele em um cartaz; ali, pedimos a retirada de um quadro de Balthus de um museu alegando que seria uma apologia da pedofilia; na confusão entre o homem e a obra, pedimos a proibição da retrospectiva de filmes de Roman Polanski na Cinemateca e conseguimos o adiamento daquela dedicada a Jean-Claude Brisseau. Uma universitária considera Blow Up, o filme de Michelangelo Antonioni, “misógino” e “inaceitável”. À luz desse revisionismo, John Ford (Rastros de Ódio), e até mesmo Nicolas Poussin (O Rapto das Sabinas) ficam numa situação delicada.

Os editores já estão pedindo a algumas de nós para tornarmos nossos personagens masculinos “menos sexistas”, para falar sobre sexualidade e amor com menos desmedida ou ainda para fazer com que os “traumas sofridos pelos personagens femininos” sejam deixados mais evidentes! À beira do ridículo, um projeto de lei na Suécia quer impor um consentimento expressamente notificado a todo candidato a uma relação sexual! Com um pouco mais de esforço, dois adultos com vontade de se deitar juntos terão de assinalar com antecedência, por meio de um “aplicativo” de seu telefone celular, as práticas que aceitam e aquelas que recusam, devidamente listadas em um documento.

Ruwen Ogien defendia uma liberdade de ofender indispensável à criação artística. Do mesmo modo, nós defendemos uma liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual. Hoje estamos suficientemente avisadas para admitir que a pulsão sexual é por natureza ofensiva e selvagem, mas também somos suficientemente clarividentes para não confundir paquera desajeitada com agressão sexual. Acima de tudo, estamos conscientes de que a pessoa humana não é monolítica: uma mulher pode, no mesmo dia, dirigir uma equipe profissional e desfrutar de ser o objeto sexual de um homem, sem ser uma “vagabunda” ou uma cúmplice vil do patriarcado.

Ela pode zelar para que seu salário seja igual ao de um homem, mas não pode se sentir traumatizada para sempre por que alguém se esfregou nela no metrô, embora isso seja considerado crime. Ela pode até considerar isso como expressão de uma grande miséria sexual, ou como um não-acontecimento.

Como mulheres, não nos reconhecemos nesse feminismo que, para além da denúncia do abuso de poder, assume as feições do ódio contra os homens e a sexualidade. Nós acreditamos que a liberdade de dizer não a uma proposta sexual não existe sem a liberdade de importunar. E consideramos que é preciso saber responder a essa liberdade de importunar de outra maneira que não seja se fechar no papel de presa. Para aquelas dentre nós que escolheram ter filhos, pensamos que é melhor criar nossas filhas de modo que sejam informadas e conscientes o suficiente para poderem viver plenamente suas vidas sem se deixar intimidar ou culpar. Os acidentes que podem afetar o corpo de uma mulher não necessariamente atingem sua dignidade, e não devem, por mais difíceis que às vezes possam ser, necessariamente fazer dela uma vítima perpétua. Porque não somos redutíveis ao nosso corpo. Nossa liberdade interior é inviolável. E essa liberdade que apreciamos não existe sem riscos ou responsabilidades.

Nenhum comentário: