sábado, janeiro 25, 2014

SÃO PAULO 460 ANOS.





Um rolê com Paulo Bomfim.
por JORGE CALDEIRA




Paulo Bomfim não apenas vive fisicamente em São Paulo há 87 anos. A cidade para ele tem história, de modo que muitos lugares não lhe aparecem como paisagens prosaicas do tempo que vive, mas como testemunhos ancestrais. O parque da Luz é o lugar da ermida que Domingos Luís, o Carvoeiro, construiu no século 16; a praça do Patriarca, o ponto de refúgio do Mirinhão, um ancestral seu do século 18; a rua Espírita, no Cambuci, o quilombo espiritual do negro Batuíra, no século 19.

Outros pontos da cidade ganham colorido porque evocam memórias pessoais, testemunham encontros que os tornaram especiais. A praça Marechal Deodoro atravessada pelo Minhocão tem outros ares quando descrita como ponto de encontro com o cantor Nelson Gonçalves, seu irmão Quincas e o palhaço Piolim. A praça da República aparece com garapa, sorvete, normalistas e o guarda Antônio, protetor dos boêmios. Até o velório de Mário de Andrade muda, quando nele se mistura o desnudamento da tradutora Leonor Aguiar.

A cidade é também o centro de sua escrita, tema constante de seus 26 livros de poesia (e mais meia dúzia de antologias, no Brasil e na Espanha) ou prosa -seu livro mais recente, "Insólita Metrópole", lançado em 2013, é uma antologia de crônicas sobre São Paulo, organizada por Ana Luiza Martins (Ateliê Editorial). Assim, outros aspectos da cidade são descritos por suas características metafísicas.

Com tudo isso, a São Paulo de Paulo Bomfim é tecida por casos que, contados na sequência de sua prosa viva, dão uma dimensão bem diferente daquela da metrópole que quase se esquece da alma encantadora de suas ruas. A seguir, o registro de um desses passeios, na voz do escritor.

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A Fundação MÍstica

"O corpo de São Paulo foi formado pela carne e o sangue de João Ramalho e Tibiriçá. A cabeça veio de Manoel da Nóbrega. Mas a alma de São Paulo veio de José de Anchieta. Já o governo veio de Santo André, a vila dos parentes de João Ramalho."

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R. Jaguaribe
Waldemar Zumbano

"Um dia estava no Instituto Jaguaribe, no ringue de boxe. Vejo chegar um homem muito míope, ele tira os óculos com cuidado. Era pequeno, tinha cara de poeta, nenhuma musculatura. Sobe no ringue e me convida para fazer luvas. Tentei, tentei, e nada de acertar um soco nele. Cansei, parei e perguntei: 'Quem é você?'. E ele: 'Waldemar Zumbano'. Ficamos amigos o resto da vida. Ele era comunista, como aliás eram quase todos os pugilistas da cidade."

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Cemitério da Consolação
marquesa de Santos

"Toda vez que vou ao cemitério da Consolação visitar o túmulo de meus ancestrais, deixo uma rosa no túmulo da marquesa de Santos, que fica ao lado. Uma vez, quando estava depositando a flor, havia uma preta velha ajoelhada, rezando. Ela virou-se para mim e perguntou: 'O senhor também é devoto da marquesa?'. Eu digo: 'Sou'. E ela: 'Comigo fez milagre. Pedi à marquesa para interceder junto ao professor Bardi. Consegui fazer uma exposição no Masp e estou aqui pagando a promessa'."




R. Lopes Chaves
Mário de Andrade

"As tias dele tocavam piano para as crianças dançarem nos saraus da casa de meu avô. Ele ia sempre, cantava e tocava. Numa festa de Ano-Novo estava todo mundo meio desanimado. Ele puxou cordão pela sala de casa, as tias na frente e eu criança no fim da fila. Ficou todo mundo alegre. E não esqueço do velório dele, na casa da rua Lopes Chaves. A Leonor Aguiar era uma figura extraordinária, uma mulher inteligentíssima, fora da época, traduzia, falava e declamava russo. Ela entrou com uma roupa. Quando chegou no caixão, resolveu trocar. Tirou o vestido, ficou de combinação na frente do morto e de todo mundo, colocou o outro sem a menor cerimônia."

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Pça. Marechal Deodoro
Piolim e Quincas

"Havia ali o bilhar do Quincas, irmão do Nelson Gonçalves. Joguei com ele muitas vezes, porque o lugar era um ponto de encontro de boêmios. Mas também ia até a Marechal Deodoro para conversar com o Piolim, palhaço que foi muito meu amigo a vida inteira e que então montava seu circo em plena praça."

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R. Epitácio Pessoa
Catulo da Paixão Cearense

"Na esquina com a Rego Freitas ficava a casa de meu avô, onde passei a infância. Minha tia Cecília era cantora, todos os poetas e compositores da época iam aos saraus que aconteciam sempre: Olavo Bilac, Vicente de Carvalho, Coelho Neto, Paulo Setúbal. Uma de minhas lembranças mais antigas, quando tinha algo como cinco anos, foi a de ver o Catulo da Paixão Cearense de joelhos, tocando violão e cantando."

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Pça. da República
guarda Antônio

"Passei minha infância brincando lá, minha adolescência tomando sorvete na Japonesa ou garapa no Nosso Engenho, enquanto esperava a saída das alunas da Caetano de Campos. E havia um português muito bom, o Antônio, que era guarda do jardim. De noite ele cobria os mendigos com jornal, protegia os boêmios que ficavam dormindo nos bancos para curar a bebedeira."

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Parque da Luz
Domingos Carvoeiro

"Era a ermida de Domingos Luís, o Carvoeiro, uma figura mítica da história de São Paulo. Séculos depois o frei Galvão construiu o convento lindo que está ali até hoje."

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Pça. do Patriarca
Mirinhão

"Era o território de um antepassado meu, o Mirinhão, que largou o bandeirismo no século 17 para se tornar um ermitão, tomando conta de uma pequena capela que havia ali. Cuidou da capelinha de Santo Antônio e fez um testamento onde exigiu ser enterrado no altar-mor -e nem era ainda a igreja atual, com o teto do frei Jesuíno de Monte Carmelo."

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Av. São Luís
Manuel Bandeira

"Minha mulher Emy e eu ficamos sócios de uma galeria de arte que ficava no prédio Zarvos, onde antes era a casa do barão de Souza Queiroz, na av. São Luís, bem em frente à biblioteca. Um dia, no lançamento de um livro do Manuel Bandeira, fizemos cartazes com os poemas. Chega o Lima Barreto, o cineasta que fez 'O Cangaceiro'. Ele entra, olha os cartazes e vai direto para a mesa de autógrafos falando: 'Bandeira, naquele poema tem um erro de português'. Ele largou o copo de uísque, nem precisou arregaçar os punhos, porque costumava cortá-los quando ficavam puídos. Levantou e gritou: 'Erro de português é você, seu fotógrafo lambe-lambe. Ponha-se daqui para fora'. E expulsou o desafeto."

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Rua Espírita
Batuíra

"No século 19, nessa ruazinha do Cambuci morava o Batuíra, que ali fazia uma mistura de cultos espíritas e africanos. Além disso ele mantinha um pequeno teatro na região da atual rua Senador Queiroz. Com o dinheiro das récitas ele ajudava a libertar escravos."

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Parque da Luz
Luis Humberto Gelfi
"Ele era de Bergamo, foi parar no Cairo, teve algum problema com uma mulher, teve de fugir. Veio sem dinheiro no navio, dando aula de dança para os passageiros. Desembarcou em São Paulo sem um centavo, na estação da Luz. Atravessou para o jardim, olhou dali a torre da estação. Voltou, foi procurar o diretor, ofereceu-se para limpar o relógio. Foi o primeiro dinheiro que ganhou na cidade. Como sabia guiar, acabou ensinando os filhos de dona Veridiana Prado a dirigir automóveis -e acabou casando com uma amiga francesa dela, a Luíza. Ambos viriam a ser meus sogros."

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Av. Ipiranga
Aracy de Almeida

"Eu era recém-casado. Um dia toca a campainha do apartamento. Era a Aracy de Almeida, dizendo: 'Paulo, eu estou com muita angústia, não queria ficar no hotel. Posso ficar em sua casa dois ou três dias?'. Peço para a Emy [Emma Gelfi Bomfim] tirar as crianças do quarto, ela se instalou. Foi ficando. Voltava das boates de madrugada, fazia interurbanos intermináveis para a boate Vogue, no Rio de Janeiro, conversava com o Vinicius de Moraes, o Antonio Maria, até o amanhecer. Eu estava começando na vida e tinha de pagar contas de telefone astronômicas. Quase três meses depois, trouxe uma arara que ganhou de presente da boate Jangada. Quando tentei falar alguma coisa, ela cortou: 'Eu respondo pela arara'. Levou o bicho para o quarto, ele comeu meus móveis, não aguentei e expulsei a ave. E ela: 'Em solidariedade à arara, também me retiro'. Mas ela foi a mulher que melhor conhecia a Bíblia que vi em toda a minha vida -e também a que sabia mais palavrões."

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Quatro Cantos
Castro Alves

"O Castro Alves morou um tempo no Hotel Itália, que foi mais tarde o Hotel de França de meu avô. Ficava no único cruzamento da cidade, conhecido como Quatro Cantos, esquina da Direita com São Bento. E eu conheci uma velhinha, que era menina nos tempos em que o poeta morava lá, que me contou que ele, quando ia para a faculdade, dava um dinheirinho para ela e dizia: 'Você fica na janela que é para ver se não aparece algum admirador da Eugênia Câmara'."

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R. Tabatinguera
d. Pedro 1º

"D. Pedro 1º chegou na tarde de 7 de Setembro de 1822, entrou na cidade pela rua Tabatinguera. Os sinos da igreja da Boa Morte anunciaram a chegada. A meu modo de ver, ele se hospedou no casarão do brigadeiro Jordão, que mais tarde foi o hotel de meu avô, Guilherme Lebeis. De lá foi para o teatro da Ópera, que ficava no pátio do Colégio. Ali ele sentou-se no piano e tocou o hino da Independência - com um olho em Domitila, a futura marquesa de Santos, nos braços de quem se tornaria um adulto."

cacique Caiubi

"A única rua de São Paulo que nunca mudou de nome. Nela ficava a taba do cacique Caiubi, irmão de Tibiriçá e Piquerobi, que morreu como uma espécie de santo, usando vestes religiosas, depois de uma conversão linda."

Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 19/01/2014 no caderno Ilustríssima.


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